Meu Sonho Parasita é um projeto que eu tinha desde a época do Ensino Médio e decidi retomar / iniciar esse ano (embora a ideia tenha sofrido algumas alterações). Não vou apresentar uma sinopse; a princípio, assumam que estão lendo as notas de alguém que está registrando sua jornada para passar o tempo e se manter firme e confiante. Estou postando no meu blog homônimo (sonhoparasita.blogspot.com) e também aqui no PUTZlog.
Espero que gostem e boa leitura.
Meu Sonho Parasita - Parte 1: Boldor
Maldita estação... odeio Outono.
Ainda é noite. Acordei a pouco e apenas a
fogueira, já quase extinta, não me deixa congelar nesse lugar maldito. Essas
semanas tem me tirado litros de suor durante o dia para mais tarde fazer meus
ossos doerem durante a noite. Não fossem a pequena fogueira para me aquecer um
pouco e minhas quase sempre diárias anotações para distrair os pensamentos, já
teria deixado o pobre Boldor sozinho há tempos. Pobre animal! Essas noites
também o castigam demais. Me sinto culpado por não deixá-lo dormir na barraca
hoje, mas ele mereceu! Se não tivesse corrido atrás daquela lebre estupida,
minhas anotações estariam comigo agora e não alimentando peixes no riacho que
cruzamos na divisa do condado. Ele não é mais um filhotinho; tem que se
comportar como um cão adulto...
Me distraí observando Boldor tremer de
frio e tive que pô-lo na cabana, pobre coitado. Desde que saímos de Tavilmor,
ele é o mais próximo do que conhecia como família e... acho que ele pensa o
mesmo de mim. Acho que já escrevi sobre nosso encontro inusitado, mas... gosto
de lembrar daquele dia e, além do mais, graças a Boldor não há mais nenhuma das
minhas anotações; posso escrever novamente sem me sentir repetitivo... na
verdade, daquele dia a única recordação feliz foi encontrar Boldor.
Depois de tanto tempo vagando, já não
consigo me lembrar com total exatidão quando foi aquele dia, mas me lembro dos
campos de trigo, dourados como o sol, e dos pomares carregados de frutas; era
Primavera. Tavilmor, minha pequena vila, lugar onde nasci, cresci e apanhei
muito de minha mãe por roubar maçãs, ficava a leste de Boreah, capital de nosso
condado. Era conhecida pelo famoso Festival da Torta de Outono. Todos os
anos nossa pequena vila virava um formigueiro de pessoas querendo provar,
comprar e participar do concurso de tortas. Diziam até que pessoas da realeza
já vieram ao festival (pra mim, isso não passava de boatos). Minha mãe fazia
tortas de maçã, uma receita que passava de geração em geração, a qual tinha um
ingrediente secreto: suco de trigo fermentado. Era uma mistura de água, trigo,
açúcar e arroz que era fermentada durante todo o ano e só retirada no dia do
festival. Quando criança, chamava de "trigomel", porque se
assemelhava muito com hidromel em tudo, menos o sabor. Puro tinha um gosto
horrível de couro velho, mas nas tortas parecia que seres divinos as tinham
preparado. Minha mãe vencia quase todo ano. Bons tempos...
Como dizia, aquele fatídico dia ainda era
numa Primavera, muito longe da época do festival, e a vila estava tranquila.
Minha mãe já tinha saído para cuidar do pomar, junto com as outras mulheres da
vila, enquanto os homens cuidavam dos campos de trigo. Eu, como um homem
adulto, deveria ter ido aos campos também, mas fiquei em casa para receber as
sacas de arroz que chegariam naquele dia, como toda estação. Após uma espera
que levou quase toda a manhã, a carroça de Taborcor chegou. Taborcor era nossa
cidade vizinha, cultivadora de arroz e milho. Minha mãe se recusava a comprar
arroz que não fosse de lá para fazer o "trigomel" para as tortas do
festival. Depois de receber as sacas, percebi que já era hora que os
trabalhadores voltariam para se alimentar, então arrumei a mesa com pão,
cordeiro e um delicioso suco de maçã para receber minha mãe. Foi então que
conheci o safado canino! Embora adorado pelas crianças, já era conhecido por
suas traquinagens e roubos de comida. Sempre ficava atento com suas
aproximações, mas, neste dia, ele conseguiu entrar em casa e se esconder
(acredito que enquanto eu guardava as sacas de arroz). Com a mesma agilidade
que uma raposa ataca uma galinha, o sarnento atacou o cordeiro sobre a mesa,
arrancando um bom pedaço do suculento assado. Corri para fora e gritei:
– MALDITO ANIMAL SARNENTO!!!
Já um pouco distante, Boldor parou, olhou
para mim com a carne na boca e disse:
Tá, ele não disse isso; cães não
falam! Mas se falassem, tenho certeza de que ele teria dito isso. Nunca
fiquei tão enfurecido em toda minha vida, então peguei uma foice e corri atrás
do desgraçado, disposto a pôr um fim no maldito e usá-lo como adubo para os
trigos. Boldor correu em volta da fonte central, me fazendo correr como idiota
por certo tempo, como um gato caçando um camundongo. Me enfureci ainda mais
quando percebi as crianças rindo da minha cara. Cego de raiva, parti para cima
de Boldor como um leão, mas tropecei e cai, ralando todo meu braço e jogando a
foice longe. Boldor, veio até mim, lambeu meu rosto e correu. Maldito animal!
Novamente senti que zombava de mim e já não me importava coma carne que ele
havia roubado; nem sabia se ainda estava com ele, só queria esfolar o
desgraçado. Num instante, levantei, peguei a foice e corri atrás do sarnento,
que já estava correndo em direção a floresta próxima da vila.
Perdi a noção do tempo caçando Boldor na
floresta. O sol já estava começando a se por quando o encontrei parado, como
uma estátua.
– Rá! Agora você não escapa! – Pensei
Cautelosamente me aproximei, mas Boldor me
farejou. Pensei que ele correria se me visse, mas ele apenas olhou para mim,
latiu e volto a olhar para o nada. Me aproximei, agora curioso e não tão
enfurecido (embora ainda com raiva). Ele olhou novamente e fez um pequeno ruído,
como se estivesse com medo ou assustado. Numa ação instintiva, me abaixei,
segurei levemente em sua cabeça e fitei seus olhos, como fazia com os cordeiros
da vila quando assustados.
–
O que foi, garoto! –
Disse.
Ele novamente fez aquele ruído choroso, enquanto eu percebia um
brilho em seus olhos. Pensei ser o reflexo das tochas que eram acendidas todas
as noites nas ruas da vila, mas não; ela estava em chamas. Acho que minha raiva
e determinação em pegar Boldor me tirou toda a atenção e, mesmo assim, não me
perdoo por não ter ouvido nem visto nada antes. Corri em direção a ela, sendo
guiado apenas pelo forte brilho alaranjado que vinha de lá. Pensava em minha
mãe, nos trabalhadores, nas crianças que riam de mim mais cedo quando caçava
Boldor; pensava que se não fosse por Boldor eu estaria ajudando meu povo;
amaldiçoava o animal enquanto corria. Ao chegar, não pude usar a entrada principal,
pois algumas árvores tinham sido derrubadas pelo fogo. Lembrei então que
poderia entrar pela janela da pequena padaria; conhecia muito bem aquele lugar,
já que levava o trigo até sua dispensa às vezes; seria fácil entrar, chegar até
a fonte e usar a água para tentar apagar o fogo. Nunca tinha enfrentado tal
situação, na verdade, minha única aventura foi caçar Boldor. Ao entrar pela
janela da padaria, me deparei com um inimigo tão perigoso quanto o fogo: a
fumaça. A irritação em meus olhos e a tosse constante, que quase me fez
vomitar, não me deixavam prosseguir. Não conseguia me guiar até a porta da e
creio que por muito tempo fiquei rodando como um pássaro desesperado numa
gaiola. O calor também era insuportável, mas, com muito esforço, consegui sair
e ver a fonte afinal. Tentei gritar por alguém, mas minha garganta estava
machucada pela forte e praticamente constante tosse e pela fumaça. Nesse
momento, depois de não ter dado nem cinco passos fora da padaria, minha visão
escureceu. Desmaiei.
Mais tarde, ainda tossindo e atordoado,
acordei do lado de fora da vila. Estava muito escuro e o fogo já a tinha
consumido. Somente cinzas e pequenas brasas eram visíveis dali. Boldor estava
deitado ao meu lado, olhando para o pouco que restara em pé. Ainda amaldiçoava
o animal; ainda o culpava pelo ocorrido! No entanto... não podia deixar de
pensar que talvez o sarnento ladrão de cordeiro tenha me tirado de lá. Talvez
ele tenha me arrastado pela parte quebrada do muro, que por sinal me
voluntariei para arrumar há semanas e havia me esquecido. Será que aquele
ladrãozinho sarnento tinha me... salvado?
Dias depois, batizei-o de Boldor, em
memória de meu pai. Sei que é estranho dar nome de pessoas a animais, mas mamãe
sempre dizia que papai tinha morrido por uma causa nobre. Se Boldor me salvou
mesmo, ele poderia ter morrido tentando me salvar; tentando salvar quem queria
mata-lo por um mísero pedaço de cordeiro. Agora, sempre que olho para ele
lembro que meu pai foi um homem honrado... Obrigado Boldor.
Já é tarde. Escrever sobre esse dia me
entristeceu um pouco. Melhor por mais gravetos na fogueira e tentar dormir novamente.
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