Motel a beira da estrada. Ela se hospedou aqui. Chegou no começo da noite, ficaria apenas até o sol nascer, disse ao balconista. Não conseguiu dormir. A televisão exibe um filme antigo, não dá para saber se é preto e branco ou se é a sintonia desregulada. O cheiro de perfume barato que ela usava se confunde com o mofo e os sprays de “odor agradável” que a faxineira passa, numa tentativa fútil de disfarçar o mau cheiro.
Típico quarto de motel, apenas um quarto com um banheiro. O quarto está arrumado. Somente a cama, levemente desarrumada. Ela deve ter chegado, tentado dormir, percebeu que não conseguiria, sentou e ligou a TV. Ou talvez ela tenha tentado dormir com ela ligada. Ela está no banheiro. Morreu estrangulada por um cinto. Volto ao quarto. A única coisa que trouxe foi uma mala, não muito grande. Abro-a. Não há muitas coisas, mas são coisas de quem está indo para não voltar. Parece que ela estava fugindo. Talvez quisesse reconstruir sua vida longe de onde estava. Do que ela estava fugindo? De alguém? De alguma coisa? De sua vida? Tantas dúvidas, tantas perguntas. Queria saber o que ela faria, o que ela conseguiria. Que marcas deixaria no mundo? Quase me arrependo de tê-la matado. Quase.
Levo seu corpo até o quarto. Já havia previamente, usando uma bíblia de bolso, escolhido aleatoriamente uma passagem. Era Timóteo 5:23. Algo assim: “Não bebas mais água só, mas usa de um pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas freqüentes enfermidades”. Deito seu corpo na cama, derramo vinho sobre seu corpo, encho sua boca e coloco a garrafa em sua mão. Escrevo a passagem bíblica com um estilete em seu braço. Eu sou o “Assassino Bíblico”.
Não sou religioso. Só entrei em igrejas em velórios. E um casamento. A escolha de usar passagens bíblicas foi ocasional. Apenas queria que minhas obras de arte não fossem classificadas como “mais uma morte”. As passagens bíblicas são a minha assinatura. Nenhum assassino vai escrever seu nome verdadeiro. Não. Temos pseudônimos e modi operandi para que sejamos reconhecidos sem que saibam quem somos.
Claro, também ajuda o fato de que a polícia suspeita de pessoas religiosas. Teorias acreditam que as vítimas tem algo em comum com as passagens que escolho. Provavelmente acharão que a pobre garota morta hoje devia sofrer de problemas estomacais ou que era alcoólatra ou que tinha gases, não sei. A única coisa que ela e a passagem têm em comum é que foram aleatoriamente escolhidas. Ela não morreu porque era uma pecadora. Não morreu porque cometeu algum sacrilégio ou quebrou um tabu. Não. Ela morreu porque tinha que morrer. Se não era sua vez de morrer, eu não a teria escolhido.
E é essa arbitrariedade, essa aleatoriedade que me leva a escrever esta carta. Eu a escrevo enquanto queimo a anterior, a que escrevi quando concretizei a obra anterior a essa. Eu a escrevo porque, caso eu morra, quero que saibam quem fui. Quero que saibam o que eu fiz. Em minha residência (imagino que a polícia pode encontrar facilmente), há um porão, cuja porta está escondida atrás de um armário, na cozinha. Lá estão meus troféus. Não quero que minhas obras de artes terminem anônimas. Posso morrer a qualquer momento. Posso ser morto por uma possível vítima. Posso morrer atropelado. Posso morrer fugindo da polícia. Posso morrer sendo assaltado. Tudo é aleatório demais.
Acho que só quero ser lembrado.
Vociferado
por Shimura-Aniki
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